Violência, relação de gênero e direitos humanos

Por Eloisa Gabriel e Francisca Pini

exibirEm tempos de indignação com a conjuntura política, governo golpista não eleito e diante de uma barbárie, em que uma adolescente de 16 anos, foi estuprada por 30 homens, ficamos a pensar: que sociedade é esta? Será que não avançamos com a Lei Maria da Penha? Por que não superamos a violência contra a mulher em pleno século XXI?

Diante das perguntas fomos buscar algumas pistas nos autores abaixo e nos deparamos com reflexões que nos dão elementos para compreender o fenômeno da violência. O primeiro dele é o patriarcado. Conforme apontam os autores “o primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino” (MARX, ENGELS, LENIN, 1980, p.22-23).

O sistema capitalista incorporou o patriarcado como estrutura das relações sociais e a origem da família e da propriedade privada. Desse modo, o modelo da heteronormatividade e a heterossexualidade obrigatória passou a ser o padrão aceito socialmente.

Recorrendo à história, durante a segunda guerra mundial (1939), houve a incorporação das mulheres no mundo do trabalho, quando ocuparam as fábricas. E a partir daí, ocorreu uma mudança no perfil da classe trabalhadora, no comportamento e nos valores das mulheres. Elas são incorporadas pelo capitalismo como mão de obra barata, com jornadas extenuantes, contribuindo com o exército de reserva.

A teoria do patriarcado é compreendida como “a forma de direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens” (PATEMAN, 1993). “Não se trata de uma relação privada, mas civil; dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrição; representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência” (SAFIOTTI, 2004).

Refletindo sobre o conceito de patriarcado e comparando com as críticas ao governo da presidenta afastada Dilma Rousseff – feitas de maneira machista e depreciativa –, fica evidente que houve pouco avanço nas questões de gênero. Temos muito a mudar, pois as opiniões expressas sobre a presidenta afastada demonstram que a violência de gênero continua mais presente do que nunca, mas agora, sem nenhum pudor ela é verbalizada e a indignação e reação da sociedade é quase nula. As mudanças ocorridas no campo das políticas sociais impactaram a vida das pessoas, mas não refletiu na mudança cultural.

No primeiro semestre de 2015, no contexto dos protestos contra a presidenta Dilma, os seus opositores fizeram uma montagem com o rosto da presidenta colado a um corpo feminino que aparecia de pernas abertas. A imagem ao ser colada na entrada do tanque de combustível dos automóveis mostrava a bomba de gasolina penetrando entre as pernas da presidenta. Naquele momento, os adesivos eram vendidos pela Internet e alguns carros circularam com os mesmos nas ruas das cidades brasileiras.

Recentemente, o estupro coletivo sofrido pela jovem no Rio de Janeiro nos fez refletir que esta cultura do estupro existe cotidianamente, não só fisicamente, como a barbárie sofrida pela adolescente, mas nas brincadeiras, nas piadas, no jeito de ver as mulheres como objeto e propriedade. Esta cultura afeta a todos(as) nós, pois ao nos omitirmos somos coniventes; ao acharmos graça da piada participamos; e ao julgarmos somos algozes.

Na década de 1970, um grupo de feministas denunciou como cultura do estupro o fato da sociedade culpabilizar as mulheres pelas violências sofridas e buscava, naquela época, normalizar as violências contra elas.

O Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de acordo com pesquisa realizada em 2013, mais de 50 mil pessoas foram estupradas. Se considerarmos que apenas 35% das vítimas fazem registro de ocorrência, é possível inferir que o Brasil tenha convivido, naquele ano, com cerca de 143 mil estupros.

A pobreza, o alimento do ódio de classe, a defesa golpista, manifestações contra estudos de gênero nas escolas, de intolerância e de homolesbobitransfobia por todo o país alimentam a violência contra a mulher.

Deparamo-nos, cotidianamente, com a fabricação do caos pela mídia. Os discursos dos processos de sociabilidade contemporânea revelam um acirramento do aumento da violência diante das insatisfações e uma profunda negação ao diálogo, à busca da compreensão por meio da reflexão, de recusa à politização.

Outro conceito que contribui para a compreensão da violência contra a mulher é o andocentrismo. Segundo Saffioti (2004), “Baseia-se em um pensamento conservador que valoriza as ideias masculinas e moralistas, para impor a força evocando o seu poder e autoridade sobre a mulher”.

Em uma sociedade marcada pela dominação masculina, nós, mulheres somos as principais vítimas, seja na política, seja na condição de raça e de classe. O combate ao estupro depende de uma mudança cultural, em especial, depende do fim do machismo, do patriarcado e de uma sociedade andocêntrica.

Entendemos que combatemos a violência e a cultura do estupro com educação em direitos humanos, quando a educação dos homens é igual a educação das mulheres.

Na história do ocidente, as mulheres foram educadas a serem impotentes (passivas) e o homem a ser potente (ativo). A ciência e a religião procuraram meios para justificar o papel subalterno da mulher na sociedade, o que produziu e produz violência de gênero, pois os crimes que são cometidos são resultados de uma sociedade patriarcal que lhes dá esse direito (SAFIOTTI, 2004).

Em recente publicação na versão on-line da revista da Carta Capital, consta que “entre 2001 e 2011, a cada uma hora e meia uma mulher morreu de forma violenta no Brasil. Foram 5.664 mortes por ano, 472 por mês, 15 por dia. E cerca de 40% de todos os assassinatos de mulheres foram cometidos por um parceiro íntimo. Os dados foram apresentados em 2013 pelo IPEA (Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas) e são resultado de uma pesquisa sobre o feminicídio no Brasil”.

A participação social, para que seja qualificada, precisa de desdobramentos no campo da institucionalização das mudanças propostas. Fazer parte apenas das consultas públicas já demonstrou sua insuficiência no campo político e educativo. A democracia participativa é mais do que consulta política. É contribuir para formular políticas públicas, participar nas decisões que afetam a vida das pessoas na sociedade e também ocupar assentos públicos em todas as esferas de poder.

Este aprendizado político e educativo ocorre como um processo de formação permanente, por meio de uma concepção de educação que educa para os direitos humanos. (GADOTTI, 2008). Há dez anos fruto da mobilização dos movimentos sociais de direitos humanos e de setores progressistas da educação, o Brasil aprovou o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2006) e o Ministério da Educação aprovou as Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos (Resolução nº 01/2012, Conselho Nacional de Educação/MEC), que afirmam que os processos formativos em Direitos Humanos sejam orientados pela formação ética, crítica e política das pessoas envolvidas. A formação ética refere-se aos valores como: dignidade da pessoa, liberdade, diversidade, laicidade, sustentabilidade, justiça, paz, igualdade e reciprocidade, ou seja, precisamos educar toda a sociedade no âmbito da família, dos espaços públicos em geral e a sociedade como a assunção de uma nova cultura que reconheça o outro na sua singularidade e o fato de pertencermos a uma mesma comunidade de vida possamos ser respeitados.

Referências:

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1983.

BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos; Ministério da Educação, 2006.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho nacional de Educação. Conselho Pleno. Resolução nº 1 de 30 de maio de 2012. Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 48, 31 de maio de 2012. Disponível em: <http://www.dedh.gov.br>. Acesso em: 29 maio 2013.

CISNE, Mirla. Família, divisão sexual do trabalho e reprodução social. In: Feminismo e Consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2014.

GADOTTI. Moacir. Educar para a Sustentabilidade: Uma contribuição à Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Editora Instituto Paulo Freire, 2008.

HIRATA, Helena. Reestruturação produtiva, trabalho e relações de gênero. In: Revista Latinoamericana de Estudios del Trabajo, 4, n. 7, 1998.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LÊNIN, Vladimir. A sagrada família. Trad. Marcelo Bakes. São Paulo: Boitempo, 2003.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LÊNIN, Vladimir. Sobre a mulher. 3ª Ed. São Paulo: Global Editora, 1981.

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. São Paulo: Terra e Paz, 1993.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 1º ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, SEXO FRÁGIL. Disponível em: http://sobreasmulheresucsal.blogspot.com.br/2013/11/androcentrismo-o-que-e.html. Acesso em: 29 mai 2016.

Eloisa Gabriel é assistente social, mestre em serviço social, militante da CMP e integrante do Comitê Estadual de Direitos Humanos.

Francisca Pini é assistente social, doutora em serviço social, diretora pedagógica do Instituto Paulo Freire e integrante do Comitê Estadual de Direitos Humanos.

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